quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Tropeços

 ‘Tropeços’ foi um dos espetáculos trazidos à Salvador pela Mostra SESC de Artes. E indo de encontro a todo o meu planejamento do dia, assisti a esta apresentação, e até hoje não consigo acreditar onde este tropeço pôde me levar.
Ao se sentar na platéia, o público se depara com uma mesa, repleta de velas cobrindo sua extensão, que servirá de cenário para a representação. Em cima desta mesa, encontram-se dois pequenos baús, rodeados por alguns outros objetos pequenos, como, por exemplo, jarro de flores, porta retratos, garrafas e livros. Ao som de uma música triste e melancólica, uma mulher (Katiane Negrão) entra em cena e, com uma vela, acende as  que lá estavam. Passa esta vela para um homem, que coloca um pano em torno da mão e continua a ação iniciada por esta mulher. Aos poucos, como uma música sutil que não se percebe quando começa, notei que não tinha mais ninguém em cena, além de uma velha, materializada pelas mãos deste homem (Dico Ferreira), e vestida pelo tal pano. Lembrei-me então que não sou muito próxima do teatro de animação, mas já era tarde. Já tinha sido arrebatada pelo espetáculo.
Este espetáculo conta a história de duas velhinhas que vivem juntas. Uma viciada em livros e em cigarros de maconha, enquanto a outra passa a peça inteira tentando seduzir a primeira, com jantar romântico, tango, flores etc. Sim, elas são homossexuais. Este enredo, segundo contaram os atores no bate-papo no fim da apresentação, choca ainda em muitos lugares. As pessoas não conseguem aceitar que pessoas idosas ainda sintam prazer com atividades tão banais quanto estas, e nem aceitam o fato de que as pessoas homossexuais envelhecem.  Mas isso não foi, nem de longe, o que mais chamou minha atenção.
O que me fascinou mesmo foi a execução do espetáculo. As mãos dos atores eram muito precisas tanto na manipulação dos objetos dispostos no cenário, quanto na composição das personagens, e com o auxílio da iluminação das velas, a forma do rosto destas, se tornava muito clara.  A fala das personagens se utilizava de um recurso muito conhecido no teatro, chamado gramelot. E este soluciona o possível estranhamento que se criaria caso a comunicação entre as personagens fosse com um texto “tradiocional”. Havia também interações com a platéia, e ver isso acontecer, era como assistir à “dualidade” vivida pelo ator.  Pois eles estavam atentos ao espaço, atentos às reações da platéia, mas respondiam como os personagens. A ponto de nem levantarem a cabeça ao se dirigir, com a mão, a alguém da platéia.
Tropeços foi me ganhando com o riso. Pouco à pouco eu ia me aproximando mais dessas duas velhinhas e ria muito de tudo o que acontecia, bem como todos que estavam ao meu lado. Quando, depois de muitas tentativas, elas se beijam parecia que a sala tinha alcançado o ápice de um possível gráfico de risadas, caso este fosse criado. Nessa hora os dois atores tinham a platéia nas mãos.
Então, uma delas some. Simplesmente some. Tinha morrido. E a que ficou só recomeça todas as atividades cotidianas, que executava com a outra, sozinha. A música melancólica do começo também recomeça, e aos poucos as velas são apagadas. Restando no fim apenas uma, próxima ao centro da mesa, criando um foco de luz na velhinha que estava chorando. Até que esta também se apaga, e enquanto aplaudo, percebo que também estava chorando.
Este final parece piegas, mas foi a melhor forma de descrever minha aproximação com este espetáculo. Foi tudo muito sutil. Exceto a morte. Mas, esta nunca é. E acho que isso justifica o nome do espetáculo. Afinal de contas, existe tropeço maior do que a morte?

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